Greg Girard – Um ideal de persistência na fotografia urbana

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Em meio à prostituição cotidiana, jogos de azar e o cheiro de carcaças em decomposição, Greg Girard começou a documentar os últimos anos da enigmática Cidade Murada de Kowloon, no coração de Hong Kong, capturando a essência deste lugar antes de seu desaparecimento.

O QUE VOCÊ VAI APRENDER NESTE ARTIGO:

O agitado comércio de Kowloon, 1987.

Seja perseverante na fotografia documental

Em nossas aulas de Fotojornalismo e Street Photography, destacamos que um fotógrafo em campo deve agir como um caçador: rastrear, camuflar-se, esperar pacientemente e manter seu objeto de interesse sob constante vigilância. A paciência é fundamental!

Mesmo os fotógrafos mais habilidosos tecnicamente podem falhar na fotografia documental se não forem persistentes. A paciência e a perseverança são essenciais para capturar imagens autênticas e impactantes. O termo “snapshot”, utilizado para descrever fotos instantâneas como as feitas nas antigas Polaroids, vem do inglês e inicialmente descrevia o ato de um caçador, fortalecendo ainda mais a conexão entre fotografia e caça.

Para um fotógrafo documental, a perseverança é crucial. Quanto maior o contato com o assunto, mais profundo será o entendimento e o olhar fotográfico sobre ele, resultando em imagens mais significativas e precisas.

Ponte Granville, Vancouver, 1975.

Quem é Greg Girard?

Greg Girard, nascido em 1955, é um renomado fotógrafo canadense que se destacou por sua vasta contribuição à fotografia documental na Ásia. Sua jornada fotográfica começou em 1974, quando visitou Hong Kong, e mais tarde ele se estabeleceu em Tóquio, Hong Kong e Xangai. Em 1987, Girard tornou-se fotógrafo profissional, primeiro em Hong Kong e depois em Xangai, onde começou a explorar as transformações sociais e físicas da região.

Um dos marcos de sua carreira foi a coautoria, junto com Ian Lambot, do livro “City of Darkness: Life in Kowloon Walled City” (1993). Esta obra é um registro impactante em fotos e texto dos últimos anos da infame Walled City de Hong Kong, que foi demolida em 1992.

Girard é reconhecido por respeitar a essência de seu trabalho, tendo uma abordagem cuidadosa e sensível às comunidades que fotografa. Embora tenha registrado exaustivamente sua cidade natal, Vancouver, sua obra é fortemente influenciada por sua experiência na Ásia, especialmente ao capturar a vida nas áreas menos favorecidas. Através de suas imagens, ele oferece uma visão profunda e única das mudanças que moldam as sociedades contemporâneas.

Shanghai, 2002.

As Fotografias de Greg Girard: Saudosismo e Melancolia

As fotografias de Greg Girard evocam um profundo misto de saudosismo e melancolia. Sua obra é uma síntese rica dos anos de 1972 a 1994, período em que ele desenvolveu seus projetos fotográficos mais significativos. Um aspecto notável do seu trabalho é a sua preferência por câmeras analógicas, o que confere um visual orgânico e despretensioso às suas imagens. Essa escolha técnica é uma característica ímpar da fotografia documental, permitindo que suas obras capturem a essência das cenas com autenticidade e emoção.

Girard consegue, assim, criar narrativas visuais que refletem as transformações sociais e culturais da época, convidando o espectador a mergulhar em uma experiência estética profunda e contemplativa. Suas fotografias não apenas documentam momentos, mas também despertam sentimentos que conectam passado e presente, enriquecendo ainda mais o legado de sua carreira como fotógrafo.

Prédios na Avenida Railway, Vancouver, 1975.

Greg Girard: A Arte do Detalhe nas Composições Fotográficas

Greg Girard é um exímio detalhista em suas composições fotográficas. Seus enquadramentos precisos não apenas capturam a essência dos locais e situações retratados, mas também nos transportam para a cena com facilidade. Essa habilidade singular estimula uma imersão rara, muitas vezes ausente nos trabalhos de outros fotógrafos.

A geometria e a composição acertada são características marcantes em suas fotografias. Girard utiliza esses elementos para criar imagens que vão além da simples documentação, oferecendo ao espectador uma experiência visual rica e envolvente. Sua atenção aos detalhes transforma cada fotografia em uma narrativa visual, refletindo a alma dos ambientes e a complexidade das situações humanas.

Por meio de seu olhar apurado e sensibilidade artística, Greg Girard continua a inspirar e fascinar amantes da fotografia em todo o mundo.4o mini

Vancouver, 1981. A geometria e a composição precisa se destacam como características essenciais no trabalho de Greg Girard, refletindo sua habilidade em capturar a essência dos ambientes urbanos.

Greg Girard e o seu projeto fotográfico: “City of Darkness”

Um dos principais projetos fotográficos de Greg Girard é intitulado “City of Darkness”, que documenta a infame Cidade Murada de Kowloon, em Hong Kong. Esta região, conhecida por sua alta densidade populacional e condições de vida degradantes, foi demolida em 1993 e é frequentemente considerada a maior favela vertical do mundo.

O projeto “City of Darkness” não apenas captura a arquitetura única e a vida cotidiana dos moradores, mas também revela as complexidades sociais e culturais que permeavam este espaço. Girard utiliza seu olhar sensível e detalhista para registrar a essência da cidade, oferecendo uma visão impactante da realidade vivida por seus habitantes.

As fotografias de Kowloon não são apenas uma documentação visual, mas um testemunho da resiliência humana em meio a condições adversas. Esse trabalho consolidou Greg Girard como um importante fotógrafo documental, destacando sua capacidade de transformar lugares esquecidos em narrativas poderosas.

Vista noturna de uma das fachadas da Cidade Murada de Kowloon, revelando a complexidade e a atmosfera única deste icônico espaço urbano em 1987.

Greg Girard e a Cidade Murada de Kowloon: Uma Imersão em um Mundo Esquecido

Quando o fotógrafo Greg Girard visitou Hong Kong na década de 1970, ele ouviu rumores sobre uma comunidade enigmática no coração da cidade, onde prostitutas e padres coexistiam e viciados em drogas e crianças compartilhavam os mesmos corredores. Sem ter visto fotos ou conhecido alguém que tivesse visitado o local, sua curiosidade foi aguçada.

“Em uma noite de 1985, simplesmente me deparei com Kowloon. Virei uma esquina e lá estava: um enorme edifício que não se parecia com nada que já tinha visto. ‘Esta deve ser a Cidade Murada de Kowloon’, pensei comigo mesmo”, relata Girard.

A Cidade Murada de Kowloon, com uma história que remonta à Dinastia Song (960-1279), era um enclave autossuficiente em Hong Kong, caracterizado por extrema pobreza e condições de vida precárias. Apesar de sua estrutura deteriorada, com canos vazando e paredes em ruínas, era o lar de cerca de 35.000 pessoas que viviam em espaços minúsculos, empilhados umas sobre as outras.

“Percebi que, apesar de sua reputação como uma favela perigosa, era na verdade uma aldeia vertical da classe trabalhadora, com pessoas tentando sobreviver como em qualquer lugar”, diz o fotógrafo sobre sua primeira visita à Cidade Murada. “Isso se tornou o ponto central do meu projeto: mostrar como as pessoas viviam e trabalhavam em condições extraordinárias”.

Apesar de sua pobreza e desigualdade, Kowloon inspirou uma variedade de movimentos na cultura pop, aparecendo em filmes como Bloodsport (1988) e Batman Begins (2005), além de videogames como Call of Duty: Black Ops (2010). Girard atribui o fascínio cultural de Kowloon ao fato de que “representava liberdade; um lugar onde tudo poderia acontecer e tudo era tolerado”.

Originalmente uma fortaleza militar chinesa, Kowloon se desenvolveu organicamente, sem planejamento ou projeto, adquirindo características típicas de uma favela vertical. Na década de 1950, tornou-se um centro de prostituição, tráfico de drogas e cassinos, controlados por máfias chinesas. Os acessos eram monitorados, e os apartamentos internos não possuíam janelas, enquanto as moradias externas, com vista, eram as mais valorizadas. A densidade populacional era tão alta que não havia ruas ou avenidas para automóveis, apenas estreitos corredores.

As atividades em Kowloon frequentemente geravam alvoroço em toda Hong Kong. Um assassinato na cidade era um evento comum, mas um assassinato em Kowloon era “O” assassinato, atraindo atenção e repercussão sem precedentes.

Um apartamento típico de Kowloon, 1989.

A Cidade Murada de Kowloon: Conflitos e Transformações na Colônia Britânica

Durante o período em que Hong Kong era uma colônia britânica, a Cidade Murada de Kowloon tornou-se um microcosmo das tensões entre a China e a Grã-Bretanha. A China responsabilizava os ingleses pelas mazelas e condições degradantes da região, enquanto a Inglaterra alegava que Kowloon era de responsabilidade das autoridades chinesas. Apesar de sua autonomia em Hong Kong, os britânicos permitiram que as autoridades chinesas utilizassem os recursos econômicos da colônia como quisessem.

A falta de vigilância sanitária e a inexistência de uma gestão eficaz tornaram Kowloon um verdadeiro “paraíso” para açougues clandestinos. Grandes fábricas de carne processada de Hong Kong transferiram suas operações para Kowloon para escapar da fiscalização rigorosa, exacerbando ainda mais as condições insalubres do local.

Na década de 1980, embora Kowloon tivesse se tornado relativamente pacífica, a qualidade de vida já era considerada intolerável para os padrões da crescente China do final do século XX. Reconhecendo a urgência da situação, em 1987, um acordo foi estabelecido entre a Inglaterra e o governo de Hong Kong para demolir Kowloon e transformar a área em um vasto parque memorial. A demolição começou no início de 1992 e se estendeu por quase dois anos, sendo concluída no final de 1993.

Um açougue clandestino, 1990.

Kowloon Walled City Park: A Transformação da Cidade Murada e o Legado de Greg Girard

Um ano após a demolição da Cidade Murada de Kowloon, a área foi transformada em um espaço verde público, conhecido como Kowloon Walled City Park. Este parque, que abrange 330.000 pés quadrados, é um símbolo do que já foi o local mais densamente povoado do mundo.

A fascinação de Greg Girard pelo arranjo urbano das metrópoles asiáticas o levou a passar cinco anos em Hong Kong, onde estudou, documentou e fotografou a imensa Kowloon e a rotina de seus habitantes. Seu projeto intitulado City of Darkness visa não apenas retratar as condições de vida na região, mas também capturar o espírito da comunidade que habitava esse ambiente anormal, totalmente autogovernado e negligenciado pelos governos britânico, chinês e de Hong Kong.

Este projeto é considerado o maior trabalho fotográfico já realizado sobre a Cidade Murada de Kowloon. Graças às habilidades fotojornalísticas de Girard, podemos hoje explorar o âmago desse instigante monumento à resiliência humana.

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Localizada ao lado do Aeroporto de Hong Kong, a comunidade de Kowloon vivia em meio à agitação constante das aeronaves, que cruzavam os céus, refletindo a vibrante dinâmica da vida na região. 1990.

In The Near Distance 1973-86: A Jornada Fotográfica de Greg Girard

In The Near Distance 1973-86 é uma obra que documenta as primeiras andanças de Greg Girard, refletindo sua busca adolescente por perspectivas e objetivos. O livro apresenta uma coleção de paisagens noturnas de rua, retratos de marinheiros e amigos, além de imagens evocativas de criaturas da noite e quartos de hotel.

Durante esses anos formativos, Girard utilizou principalmente slides coloridos, adicionando um novo e importante corpo de trabalho à fotografia colorida dos anos setenta. Consciente do poder da iluminação, ele explorou a luz de lâmpadas de néon e elétricas, capturando temperaturas de cor singulares que se tornariam uma característica marcante em sua obra futura, especialmente em Phantom Shanghai, publicado em 2007.

Inspirado pela estética dos filmes dos anos setenta, pela literatura de Peter Handke e pela cultura asiática, Girard desenvolveu um imaginário individual. Suas fotografias impressionantes capturam as impressões visuais, emoções e a atmosfera dos diversos lugares e estações que visitou.

Ruas úmidas de Kowloon, 1989

Conheça mais sobre o trabalho de Greg Girard

Atualmente, Greg Girard se dedica à edição e publicação de livros e exposições de seus projetos fotográficos. Ele é representado pela galeria Monte Clark, no Canadá, e colabora com publicações renomadas, como a revista National Geographic.

Para explorar mais sobre o trabalho deste notável fotógrafo documental, acesse seu site.

Conclusão

O trabalho de Greg Girard se destaca pela profundidade e sensibilidade com que documenta comunidades urbanas em transformação. Sua abordagem meticulosa e respeitosa em projetos como “City of Darkness” revela não apenas as condições de vida, mas também a essência e o espírito resiliente de seus habitantes. Utilizando técnicas fotográficas que mesclam composições geométricas e uma paleta de cores rica, Girard cria imagens que vão além do mero registro, convidando o espectador a refletir sobre as complexidades sociais e culturais de lugares frequentemente marginalizados. Sua contribuição à fotografia documental não apenas preserva a memória de locais como a Cidade Murada de Kowloon, mas também nos lembra da importância da perseverança e da empatia no ato de contar histórias através da imagem. Greg Girard se estabelece, assim, como um dos grandes nomes da fotografia contemporânea, utilizando sua arte para explorar e iluminar os cantos mais obscuros da experiência humana.

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