Greg Girard – Um ideal de persistência na fotografia urbana

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Entre a prostituição do dia-a-dia, jogos de azar e odores de carcaças podres, Greg Girard começou a fotografar a última década da Cidade Murada de Kowloon no coração de Hong Kong.

Neste artigo você vai aprender:

Seja perseverante!

Sempre comentamos em nossas aulas de Fotojornalismo e Street Photography que um fotógrafo em campo deve atuar como um caçador. Deve rastrear, camuflar-se, ficar à espreita, mantendo sua(s) caça(s) sob constante vigilância e, o mais importante, ter paciência!

Grandes fotógrafos, com técnicas apuradíssimas, não seriam capazes de realizar um trabalho documental pelo simples fato de não possuírem essa característica. Paciência e persistência são os elementos chaves para esse tipo de fotografia. Inclusive,”snapshot” foi massivamente usado para o disparo de fotos instantâneas, nas antigas Polaroids. Na língua inglesa o termo surgiu inicialmente para definir o ato de um caçador, afirmando ainda mais a relação que a fotografia tem com a prática da caça.

E se tem algo que molda definitivamente o trabalho de um fotógrafo documental é a perseverança, pois, quanto maior e mais estreito contato com o motivo fotografado, melhor vai ser o conhecimento e olhar do fotógrafo acerca do assunto em questão.

Quem é greg girard?

Greg Girard, nascido em 1955, é um fotógrafo canadense que passou grande parte de sua carreira na Ásia, primeiro visitando Hong Kong em 1974 e depois morando em Tóquio, Hong Kong e Xangai. Ele se tornou fotógrafo profissional em 1987, primeiro em Hong Kong e depois em Xangai. Seu trabalho até o momento examinou as transformações sociais e físicas que ocorrem em toda a região. Em 1993, ele foi coautor (com Ian Lambot) de “City of Darkness: Life in Kowloon Walled City”, um registro em fotos e texto dos anos finais da infame Walled City de Hong Kong, demolida em 1992.

Greg Girard é um grande fotógrafo documental que respeitou simetricamente a essência do seu trabalho. Canadense, fotografou exaustivamente sua cidade natal, Vancouver. Porém, passou boa parte de sua carreira na Ásia, sendo ela sua grande musa inspiradora. Seu trabalho analisa as transformações sociais e físicas que ocorrem em toda a região, em especial os locais menos abastados.

Ponte Granville, Vancouver, 1975
Shanghai, 2002

Suas fotografias nos causam um misto de saudosismo e melancolia. A síntese do seu trabalho está fundamentada nos anos de 1972 a 1994, que foi quando realizou seus principais projetos fotográficos; e também pelo fato de ainda trabalhar com câmeras analógicas, fato que conferia um visual mais orgânico e despretensioso às suas fotografias, características ímpares da imagética documental.

Prédios na Avenida Railway, Vancouver, 1975

Girard é um exímio detalhista em suas composições. Seus enquadramentos precisos refletem a alma dos locais e situações retratados, nos transportando com facilidade à cena, estimulando uma imersão raramente vista nos trabalhos de outros fotógrafos. Geometria e composição acertada são características marcantes em suas fotografias.

Vancouver, 1981. Geometria e composição acertada são características marcantes em suas fotografias.

Seu principal projeto fotográfico: city of darkness

Um de seus principais projetos fotográficos foi a Cidade Murada de Kowloon, em Hong Kong. Kowloon era uma região altamente povoada e degradada, que foi demolida em 1993, sendo considerada a maior favela vertical do mundo.

Vista de uma das fachadas de Kowloon Walled City a noite, 1987

Quando o fotógrafo Greg Girard visitou Hong Kong em meados dos anos 70, ele ouviu falar de uma comunidade misteriosa situada no coração do país, onde prostitutas e padres viviam lado a lado e viciados em drogas e crianças passeavam nos mesmos corredores. Ele nunca tinha visto fotos, nem conhecia ninguém que tivesse visitado o local.

Em uma noite de 1985, simplesmente me deparei com Kowloon. Virei uma esquina e lá no final do quarteirão Kowloon apareceu: este edifício enorme que não parecia com nada que já tinha visto. Esta deve ser a Cidade Murada de Kowloon, lembro-me de ter pensado comigo mesmo.”, Girard diz.

A Cidade Murada de Kowloon, com uma história que remonta à Dinastia Song (960-1279), era uma cidade totalmente autogovernada em Hong Kong – um complexo fechado de extrema pobreza e condições de vida desesperadoras.

Apesar de ser tomada por canos com vazamentos e paredes em ruínas, era o lar de cerca de 35.000 pessoas; todos espremidos em salas de tamanho insignificante, dispostas umas em cima das outras.

Percebi que, apesar de sua reputação de favela perigosa, era, na verdade, uma aldeia vertical da classe trabalhadora com pessoas tentando sobreviver como em qualquer lugar”, diz o fotógrafo sobre sua primeira visita à Cidade Murada.De certa forma, tudo aquilo me surpreendeu e se tornou o ponto principal do meu projeto: mostrar como as pessoas viviam e trabalhavam naquelas condições extraordinárias”.

Apesar da pobreza e da desigualdade que representava, Kowloon inspirou inúmeros movimentos da cultura pop, de filmes como Bloodsport (1988) a Batman Begins (2005) e apareceu em videogames como Call of Duty: Black Ops de 2010. Girard atribui o fascínio cultural ao fato de que tambémrepresentava liberdade; um lugar onde tudo poderia acontecer e onde tudo era tolerado”.

Originalmente uma fortaleza militar chinesa, Kowloon era uma aglomeração orgânica, que cresceu sem planejamento, sem projeto, tendo praticamente todas as características de uma favela comum, porém verticalizada.

Em meados da década de 1950 Kowloon se tornou um centro de prostituição, tráfico de drogas, cassinos; tudo controlado por máfias chinesas conhecidas da época. Os acessos eram monitorados e os apartamentos do interior do imenso bloco de concreto não haviam janelas, sendo que as moradias externas, da fachada, eram as mais valorizadas do local. Sua densidade era tanta que não haviam ruas ou avenidas para automóveis, apenas estreitos corredores de circulação.

Tudo o que acontecia em Kowloon gerava rebuliço em toda Hong Kong. Um assassinato na cidade era algo comum, mas um assassinato em Kowloon era “O” assassinato.

Um apartamento típico de Kowloon, 1989

Como na época Hong Kong pertencia à Inglaterra, sendo uma espécie de colônia britânica, a China responsabilizava os ingleses pelas mazelas de Kowloon. E, do contrário, a Inglaterra dizia que Kowloon era responsabilidade dos chineses, pois, apesar de sua autonomia em Hong Kong, os britânicos autorizavam as autoridades chinesas a utilizar os recursos econômicos de Hong Kong como quisessem.

Em consequência da ausência de vigilância sanitária, decorrente da inexistência gestão da região, Kowloon se tornou uma Meca dos açougues clandestinos. Grandes fábricas de carne processada de Hong Kong migraram para Kowloon afim de fugir da fiscalização.

Apesar de ter se tornado relativamente pacífica no início da década de 1980, a baixa qualidade de vida já estava se tornando algo intolerável para os padrões da época na crescente China do final do século XX. A partir de então, em 1987  iniciou-se um acordo entre a Inglaterra e o governo de Hong Kong para demolir definitivamente Kowloon e transformar a área em um imenso parque-memorial. A demolição começou no início de 1992 e durou quase dois anos, sendo concluída no final de 1993.

Ruas úmidas de Kowloon, 1989
O agitado comércio de Kowloon, 1987
Um açougue clandestino, 1990

Um ano após sua demolição, a cidade tornou-se um espaço verde público, o Kowloon Walled City Park. Uma área de 330.000 pés quadrados que já abrigou o local mais densamente povoado do mundo.

A fascinação de Greg Girard pelo arranjo urbano das metrópoles asiáticas fez com que ele passasse 5 anos de sua vida morando em Hong Kong, estudando, documentando e fotografando a imensa Kowloon e a rotina de seus habitantes.O projeto de Girard, intitulado City of Darkness,se propõe a ilustrar não apenas as condições, mas o espírito da comunidade que vive suas vidas normais em um ambiente anormal totalmente autogovernado e negligenciado pelos britânicos, chineses e Hong Kong governos.Foi o maior trabalho fotográfico já feito sobre a região; e graças às suas habilidades fotojornalísticas, podemos hoje conhecer o âmago desse instigante monumento.

kowloon-watching-aircraft-land-at-kai-tak-airport-from-walled-city-rooftop-1990
Situando-se ao lado do Aeroporto de Hong Kong, os habitantes de Kowloon entretiam-se com a intensa circulação de aeronaves. 1990

O livro in the near distance 1973-86

In The Near Distance 1973-86 é o documento das primeiras andanças de Greg Girard, a busca adolescente por perspectivas e objetivos: paisagens noturnas de rua, retratos de “marinheiros e amigos”, imagens de criaturas da noite e quartos de hotel.

Além dos materiais em preto e branco, Girard usou principalmente slides coloridos durante esses anos – e assim adiciona um novo e importante corpo de trabalho à fotografia colorida dos anos setenta.

Conscientemente, ele usa a luz de lâmpadas de néon e lâmpadas elétricas, explora as temperaturas de cor muito particulares e levemente alteradas dos slides e se aproxima de um dispositivo estilístico criativo que aperfeiçoa em seu trabalho Phantom Shanghai, publicado em 2007.

Inspirado na estética de filmes dos anos setenta, a literatura de Peter Handke e da cultura asiática, Girard desde muito cedo encontra um imaginário individual, no qual capta de forma impressionante as suas impressões visuais, as suas emoções, bem como a atmosfera dos diferentes lugares e estações das suas viagens.

Conheça mais sobre o trabalho de Greg Girard

Atualmente Greg Girard se dedica às edições e publicações de livros e exposições sobre seus projetos. Ele é representado pela galeria Monte Clark do Canadá e também trabalha para publicações como a revista National Geographic.

Acesse seu site para conhecer um pouco mais sobre o trabalho deste grande fotógrafo documental.

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